A Mais Longa Viagem de um Milk Shake
Trecho do livro Crônicas de um (ex)jogador, de José Roberto Padilha
Crônicas de um ex-jogador é o quarto livro de José Roberto Padilha, jornalista e ex-atleta profissional. Em sua carreira no futebol, defendeu, além de Flamengo e Santa Cruz, o Fluminense e a Seleção Brasileira sub-20. O livro recebeu a medalha de bronze do I Prêmio João Saldanha de Jornalismo Esportivo 2011.
O e-book está disponível para Kindle no amazon. Custa somente R$ 4,99 - http://migre.me/fsdx4
Como o Bob´s, que é de 1952 e só há pouco abriu suas portas por aqui, completei 59 anos em 2011, mais precisamente no dia 12 de junho. Como os 15 anos, e às vezes os 18, os quase 60 anos de vida são motivo para se comemorar, embora saibamos que, com exceção da data em si, das lembranças e da torta de morango da ita Anastácia, nada muda de verdade na vida da gente após cada aniversário. Ela, a nossa vida, continua tão imprevisível quanto no dia anterior, ainda mais enigmática que o dia seguinte que pouquíssima novidade nos reservou.
As datas consideradas históricas servem, então, apenas para olharmos pelo retrovisor, fazermos uma retrospectiva sobre o que realizamos, um balanço dos nossos acertos e erros. Entre eles, no momento em que decidíamos a seguir por ali, se postava o destino, que nos conduziu a caminhos que, caso fossem alterados, nos levariam a celebrar nossos aniversários em lugares completamente diferentes, não sei se para melhor ou para pior.
Enquanto algumas decisões se perderam, esquecidas, por não terem tanta importância, outras me inquietam e incomodam até hoje, como a que tomei aos 25 anos, em 1977. Eu era, naquela ocasião, jogador de futebol profissional, ponta-esquerda do CR Flamengo, um clube ao qual tantos lutam para pertencer e que eu, após cumprir um ano dos dois que tinha de contrato - com dez de profissão e me recuperando de uma grave fratura no pé direito -, resolvi deixar para aceitar a proposta financeiramente irrecusável feita por um usineiro de Recife, então presidente do Santa Cruz FC.
Eu iria jogar com uma equipe fantástica, treinada pelo técnico Jouber Meira, bicampeã pernambucana - em 1977 e 1978 - e quarta colocada no Brasileiro de 1979, já dirigida por Evaristo de Macedo. Dela faziam parte Joel Mens, Carlos Alberto Barbosa, Lula Pereira, Levir Culpi e Pedrinho, Givanildo, Wilson Carrasco, Betinho e Zé Roberto, Nunes e Fumanchu - uma equipe tão competente quanto a do Flamengo de Zico, Leandro e Júnior. Quase deu pra esquecer, junto à maior torcida do nordeste, os encantos da cidade do Rio de Janeiro. Em Recife, havia praias e pessoas muito bonitas, mas em 1977 a capital pernambucana não tinha uma só loja do Bob´s.
Eu e meu irmão Flávio, o Brasa, que se mudou para lá após defender o São Cristóvão FC, éramos viciados no Ovomaltine crocante de 500ml. Após cada treino, físico ou técnico, era com ele que repúnhamos nossas energias; e era ele que nos obrigava a 200 abdominais e 150 flexões extras para ter direito, sem culpa, a mais um duplo na noite seguinte.
Mesmo nas belas noites de lua na praia de Boa Viagem, e com tudo o que o nordeste nos oferecia, como jangadas, redes, sucos naturais de cajá e graviola e forró ao vivo todas as quintas na feirinha de Olinda, chegávamos a delirar de desejo por um Ovomaltine duplo crocante do Bob´s. Até que surgiu em Recife o nosso amigo Coelhão.
Coelhão era o apelido de nosso companheiro trirriense Paulo da Silva Peralta Filho, que dividia com a gente o apartamento em Copacabana e havia ficado no Rio. Seis meses após nossa chegada a Recife, mandamos pra ele uma passagem de presente: paguei a ida e Flávio a volta.
Entre outras lembranças, como cartas da família, bilhetes das namoradas e saudades dos amigos, Coelhão trouxe na bagagem a maior das preciosidades: dois Ovomaltines duplos. Antes de seguir para o Galeão, passou na Garcia D´Ávila, em Ipanema, e mandou embrulhá-los para viagem, uma viagem que, por sua vez, teve parada em Salvador e baldeação em Maceió e Aracajú, com 6 horas de duração.
A cena que se seguiu ao desembarque foi pro resto da vida. Eu e meu irmão, ansiosos, na beira do muro no Aeroporto de Guararapes, e Coelhão carregando pela pista entre os dedos já oleosos e crocantes, amparado por uma aeromoça conduzindo toalhas, o que restava de dois cobiçados milk shakes - os pobres não tinham resistido à pressurização, aos copos de papelão e a ter exposto o seu sabor. Azedaram.
Naquela noite de sexta-feira, sem ter saciado o nosso desejo, o hospedamos no Edifício Transatlântico, onde morávamos, com duas certezas definitivas: a primeira, que aquilo sim é que era amigo, todo melado e quase preso pela Suipa por tráfico de bens perecíveis; e, segundo, que fora do Rio de Janeiro, em certas ocasiões e defendendo equipes especiais, é até possível substituir o sagrado manto rubro-negro.
Só o que não se consegue mesmo é substituir o sabor e o fascínio de um Ovomaltine duplo e crocante do Bob´s.
Crônicas de um ex-jogador é o quarto livro de José Roberto Padilha, jornalista e ex-atleta profissional. Em sua carreira no futebol, defendeu, além de Flamengo e Santa Cruz, o Fluminense e a Seleção Brasileira sub-20. O livro recebeu a medalha de bronze do I Prêmio João Saldanha de Jornalismo Esportivo 2011.
O e-book está disponível para Kindle no amazon. Custa somente R$ 4,99 - http://migre.me/fsdx4
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