Fome de bola
Antes de julgar o glamour dos altos salários, da fama e as facilidades da vida de um jogador de futebol renomado, é preciso lembrar o que muitos garotos passam em busca do sonho. É preciso ter muita fome de bola, fome de vencer. Principalmente para superar, entre várias dificuldades, a fome propriamente dita. Em 2010, alguns meninos do juniores do Macaé precisavam se virar quando a noite chegava e a barriga começava a chiar. É o que conta o zagueiro Marcelo, que antes de chegar e se tornar titular do Volta Redonda, passou por maus bocados no norte do estado. Segundo ele, por lá, o jantar era servido antes das 19h e depois disso só restava torcer para o sono chegar antes da fome. "Teve uma noite em que a gente não estava aguentando mais e foi para a cozinha procurar alguma coisa. Encontramos três bananas meio verdes e na geladeira tinha um copo de leite. Colocamos no liquidificador e misturamos água para render para todo mundo. Aquilo desceu queimando", relembra.
Não foi a primeira vez que Marcelo se perguntou se estava fazendo a coisa certa. Na época, ele não tinha contrato com o antigo clube. Recebia somente uma ajuda de custo, inferior a trezentos reais. Longe de casa, que fica na cidade mineira de Juiz de Fora, a saudade da família apertava e a dúvida crescia. No dia seguinte ao episódio da vitamina aguada, o zagueiro ligou para a mãe. Sabonete e creme dental também estavam em falta. Choro dos dois lados da linha. "Vem embora, vou mandar um dinheiro pra você voltar", é o que dona Margarida teria dito ao filho que segurou as pontas. "Disse pra ela que iria dar a volta por cima disso tudo", conta Marcelo.
Ele tinha uma razão para acreditar. O campeonato de juniores estava para terminar e tudo levava Marcelo a crer que quando acabasse iria assinar contrato com o antigo clube. O jogo seguinte do Macaé foi contra o Volta Redonda. Marcelo nem sabia, mas a chance dele se tornar jogador de futebol acontecia naquela partida.
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Foto: reprodução Facebook |
Desiludido, cansado de passar dificuldades e de ficar longe de casa, Marcelo desistiu depois do campeonato pelo Macaé. Para piorar ainda sofreu uma pubalgia antes de voltar para Minas. Trocou os pés pelas mãos e passou a trabalhar com um tio fazendo serviços de marcenaria. O dinheiro começou a entrar, a saudade já não batia mais e, mesmo sem o sonho, tudo parecia bem. Menos para uma pessoa. O pai, Paulo, não se conformava com a desistência.
Veio a proposta do Volta Redonda: tratamento da pubalgia, um pequeno período no time de juniores e assinatura de um contrato profissional logo em seguida. "Já passei por muita coisa que parecia ser fácil e não deu em nada", desconfiou. Adiou o máximo que pôde uma conversa com a diretoria do Voltaço. E por "adiou" entenda "enrolou o pai". Ficou mais de seis meses parado, mas não teve jeito. "Vai fazer pouco caso?", o pai provocava. Provocou tanto que até parou de falar com o filho durante um tempo.
Venceu a queda de braço. Quando Marcelo chegou, ouviu a mesma proposta que recebeu pelo telefone. Nem assim teve certeza. "Já tinha sofrido muito no Macaé", ponderava. Foi quando o pai resolveu apelar. Encostou o filho na parede e fez questão de lembrar tudo o que já havia feito pela carreira de Marcelo. "Jogou na cara, mas não por maldade, eu sei, foi para ajudar. Depois disso não teve jeito, falei: pode marcar, pai", resignou-se.
Paulo fez o que mais queria. Marcou a vinda do filho para o Volta Redonda e arrancou da vida a segunda chance para o sonho dos dois. A família continuava apreensiva, a avó chegou até a oferecer um salário para que o menino se dedicasse aos estudos. O balançado Marcelo tinha uma pubalgia para curar e depois disso uma gratidão para justificar o trabalho duro. "O Volta Redonda me apoiou muito bem e eu estou com eles pro que der e vier", agradece.
Tudo correu conforme o planejado no início. Lesão curada, alguns jogos pelo time de juniores e ascensão para os profissionais com contrato assinado. De lá pra cá o caminho natural. Em alguns momentos foi somente a quinta opção do treinador, em outro foi titular contra o Botafogo. Chegou a jogar de lateral e até de atacante com o treinador Alfredo Sampaio, mas se firmou no time com Cairo Lima. "Os últimos anos foram só maravilha, mas eu continuo com os pés no chão e trabalhando pesado, independente de como eu estiver, para as coisas acontecerem", garante.
O trabalho árduo vem garantindo a vaga na defesa do time. Titular de uma zaga que sofreu somente três gols nos seis amistosos de preparação para a Copa Rio, Marcelo já não pensa mais em parar. Mas dona Margarida ainda tem suas recaídas. Em um desses amistosos, contra o Angra dos Reis, Marcelo dividiu uma bola no alto e levou uma cabeçada no supercílio. Dez pontos e a pergunta da mãe: "Você não quer parar com isso não?"
Agora não. Agora que pode retribuir toda a ajuda que os pais deram, Marcelo quer seguir em frente e agradecer. Agradece a Deus, à pessoas importantes no caminho, membros da Comissão Técnica do Volta Redonda e muito ao pai, "apesar dele ser chato", brinca. A distância de casa já não é tão longa. E encurta com um telefonema. Um não, vários por dia: "Meu pai até me chama de chato por ligar tantas vezes".
Mas o senhor Paulo não tem mais do que reclamar. Agora só torce e espera os novos capítulos dessa novela. Em uma outra com vários capítulos parecidos, um zagueiro negro, alto, que joga pela direita e que saiu da base do Volta Redonda, assim como Marcelo, foi parar com uma outra camisa amarela. "As características são as mesmas, mas ainda falta um pouquinho. Um pouquinho não, ainda falta muita coisa, mas sempre que vem a comparação eu agradeço a Deus", sorri lembrando das vezes em que ressaltam as semelhanças o zagueiro Dedé.
Marcelo admite que ainda falta muito feijão com arroz para repetir o sucesso de Dedé, mas, pelo menos, não precisa mais de vitamina com água. "Às vezes eu nem gosto de pensar nisso, mas tem que lembrar para dar valor ao que eu conquistei. Motiva muito", reconhece.
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